A quantidade
de viajantes de bicicleta no Brasil está explodindo. E com boas razões. Viagens
de bike são sensacionais, porque convidam à contemplação e apreciação mais
íntima dos lugares, mostrando muitas coisas que passam batidas em viagens de
carro. Além disso, os cicloturistas são gente sociável, especial, legal, culta,
divertida, bonita e simpática, que sabe apreciar os prazeres simples da vida –
e também os complexos.
É claro que dizer isso não tem absolutamente nada a ver com
o fato de eu fazer viagens de bike Mas um sinal positivo de que a cultura está
evoluindo é ser recebido numa cidade do interior com festinha, votos de
boas-vindas e convite para beber junto, como aconteceu conosco recentemente. A
explicação é simples: as pessoas adoram cicloviajantes porque eles simbolizam o
espírito de liberdade, busca espiritual e aventura.
O que nos traz ao assunto deste artigo. Aventura é boa, mas
com moderação. Toda atividade especializada requer estudo e preparação, e
pedalar por aí não é diferente. Não fique deslumbrado com as histórias heróicas
de quem atravessou o continente inteiro com uma bicicleta velha sem pedais e
sem um puto no bolso, contando só com a bondade alheia. Não vai ser o seu caso;
é um caso especial. Não é o exemplo a seguir; você não precisa viver isso.
Ao falar de preparação, não digo especificamente da mecânica
da bicicleta, assunto que sozinho pede muitos outros artigos. O tema aqui é um
certo método e procedimento para fazer a viagem com o máximo de prazer e o
mínimo de incômodo. No caso limite, esse saber fazer representa a diferença
entre voltar a casa conforme o planejado e simplesmente não voltar. Perrengues
sempre acontecem, mas uma coisa é um perrengue causado por um evento
surpreendente e imprevisto, e outra coisa muito diferente é um perrengue
causado por imprudência ou esquecimento. É na intenção de prevenir este segundo
tipo de perrengue, e em certos casos, também um pouco do primeiro tipo, que
existe esta série de dicas de viagem. Não precisa concordar e seguir todas
elas, mas cada uma tem seu embasamento e precisa ao menos ser considerada.
Segurança
pessoal.
Sua segurança pessoal é o mais importante. Todo o resto deve
curvar-se a esse princípio.
Cada membro de um grupo de viagem deve ter suas próprias
ferramentas, itens de segurança e provisões. Nada de filar coisas dos outros.
Autonomia é segurança
Não se arrisque à toa. Pedalando em grupo, você precisa
assumir muito menos riscos na pilotagem do que o que é normalmente confortável
para você. Não é só para não se machucar, mas também para não estragar a viagem
dos amigos. Assim como não é legal pedalar com alguém mal-humorado, não é legal
pedalar com candidatos a suicida. Histórias fabulosas de capotes animalescos
descendo a serra a milhão rendem histórias engraçadas para contar e alguma
habilidade nova para pilotar, mas não compensam a aflição e o transtorno
causados aos seus companheiros.
Ande com algum dinheiro trocado. Não fique dependente do
caixa eletrônico da próxima cidade que pode estar ainda bem longe. Coisas como
travessias do mar em canoas demandam dinheiro na mão.
Suprimentos.
Mesmo contando com a compra de mantimentos no caminho, leve
comida de emergência sempre, e muito mais água do que você acha que vai beber.
Se algo que deu errado tomar seu tempo e o supermercado da vila fechar, não tem
perdão
Caramanhola serve para espantar cachorros. Água de beber
mesmo vai no CamelBak (bolsa de hidratação), que tem capacidade muito maior.
Compre o seu, em vez de ficar sem água no meio do percurso e beber a do
companheiro
Sua salvação no final de um dia ruim pode estar num par de
PowerBars insossas e um CamelBak de água morna pela metade. Não comer nada ao
pedalar não traz a sensação esperada de fome, e sim uma sensação de cansaço,
confusão e mau humor, que você simplesmente não associa à falta de nutrientes.
Você sofre à toa e ainda põe a culpa na estrada, ou nos seus pobres
companheiros que inventaram de pegar aquela subida
Desidratação não avisa quando está chegando, só depois. Por
isso, beba água antes de chegar a sentir sede. Acostume-se a dar um gole a cada
10 minutos. Encha ao máximo o CamelBak e as garrafinhas em todas as paradas com
água limpa.
Vestuário.
Use camisa de manga comprida nos dias de sol sem nuvens.
Parece contraditório, mas isso é muito melhor para os braços, que são a parte
que mais queima
Camisas cobertas de logos para quê? Você não é atleta, não
precisa fazer propaganda de ninguém. Toda loja de bike vende camisas lisas,
discretas e elegantes. Camiseta de futebol ou de corrida também servem
Camiseta de algodão, nunca. Encharca, não refresca, suja e
fede. Camisetas sintéticas leves, além de não terem esses problemas, você pode
lavar em qualquer pia de posto de gasolina e logo estará seca, ou pode sair
usando ainda úmida nos dias mais quentes
Prefira usar uma bermuda de gente comum, mais discreta, por
cima da bermuda acolchoada de ciclismo, que é confortável mas esquisita em
paragens urbanas
Se for acampar, um truque legal contra os pernilongos é
pedalar com uma calça de ciclismo comprida (legging) e não tirar para dormir. A
barraca normalmente barra os bichos, também. Tem que saber armá-la rapidamente
Leve e use o protetor solar. Cuidado especial com a área
atrás do pescoço, nariz e orelhas
Se o sol pegar forte, coloque a sua toalha por cima dos
ombros e costas
Leve também um chapéu de aba larga, pois quando o sol frita
sua cabeça e rosto por horas a fio, o capacete não é a melhor solução. O melhor
chapéu é o de algodão com abas largas, que pode ser dobrado e guardado em
qualquer lugar
Óculos escuros sempre. Para quem não usa óculos de grau, um
transparente para tempo nublado bloqueia insetos e pedrinhas voando nos olhos
Para evitar assaduras, leve uma bisnaguinha de Chamois
Butt’r, produto à venda em bike shops.
Equipamento.
Cicloturismo propriamente dito é feito com barraca,
isolante, sleeping bag, saco estanque (à prova d’água), uma toalha do tipo
esportivo que fica bem pequena dobrada, jogo de ferramentas de bike completo,
lanterna de cabeça de LED, kit de primeiros socorros e um corta-vento
impermeável num local acessível da tralha. Tudo isso vai amarrado com tensores
elásticos (aranhas) na garupa e dentro do alforje
Não pretende pernoitar? Mesmo assim, ainda precisa do
bagageiro, alforjes e saco estanque
O que vai no saco estanque: muda de roupa, os documentos,
câmera, celular e todas as outras coisas que não podem molhar
Também é necessário levar um saco hermético ZipLoc contendo
um frasco de sabonete líquido e outro de shampoo com condicionador, mais a escova
e pasta de dentes, um barbeador simples e um espelhinho. Lenços úmidos ajudam
numa parada para almoçar em que você não quer tomar banho na pia do restaurante
antes de sentar à mesa.
A tralha devidamente presa no bagageiro.
Dentro de outro saco hermético vão as pilhas reserva para o
farol, a lanterna e a luz de cabeça. Podem ser recarregáveis de NiMH ou
alcalinas sem uso.
Um saco comum de supermercado deve partir vazio para você
colocar todo o lixo gerado durante o pedal, como embalagens de comida. Não deixe
rastros que não sejam dos seus pneus
Mochila é para o CamelBak e no máximo um lanche etc. Tem que
ser leve. Coisas pesadas – roupa, ferramentas, barraca – vão no alforje. Se
contar apenas com a mochila, você vai se arrepender depressa, e bem antes disso
os seus ombros e costas vão reclamar bastante
A toalha, o corta-vento impermeável e o saco estanque você
acha em casas de camping e produtos para esportes de aventura.
Aproveite e pegue também alguns mosquetões, aqueles anéis de
alumínio que podem ser usados para tudo: prendedores, chaveiros etc.
Faça uma pedalada de teste do alforje antes da viagem.
Sempre precisa ajustar a instalação para o calcanhar não bater, tiras soltas
não enroscarem na roda etc. Ter que fazer isso em plena viagem é terrível. Se
puder, faça um pedal antes da viagem com ele carregado, ainda que seja
parcialmente, como treino.
Furos de pneus são o incômodo mais comum em qualquer saída
de bicicleta. A maioria dos furos pode ser evitada. Primeiramente, os pneus
devem estar bem calibrados; quando fora da pressão recomendada, eles furam mais
fácil. Segundamente, os pneus devem obrigatoriamente ser dotados da fita
antifuro, uma espécie de manchão de plástico resistente que dá a volta em todo
o pneu, protegendo a câmara. A eficácia da fita é extraordinária, não se
percebe que está instalada ao rodar, e nem dá para reclamar do preço.
Cuidados extras com os pneus.
Beira de estrada é fatal com sujeira perigosa, especialmente
cacos de vidro e lascas de metal que você nem sequer enxerga quando está na
bike. A mesma precaução vale na cidade
Na bolsa de ferramentas TEM que ter duas câmaras de ar
zeradas para cada bicicleta, a fim de não obrigar a arriscar um remendo no
escuro em local perigoso e embaixo de chuva, que é uma situação terrível, mas
evitável
Também é indispensável um kit de reparo de pneus, vendido
pronto nas bike shops, que consiste em remendos, cola, espátulas plásticas e
uma lixa. Remendar furos toma bastante tempo, que você poderá não ter na
ocasião. Por isso, o kit só será usado para consertar furos quando as câmaras
reservas já estiverem em uso. Saiba como se aplica um remendo. Mais uma vez,
não conte incondicionalmente com a ajuda do companheiro
Sua bomba de ar será do tipo miniatura, com um cilindro de
alumínio estreito e não um de plástico largo, porque cansa menos e atinge
pressões mais altas. O modelo da Topeak é caro mas impecável. Saiba “sentir”
com os dedos quando a pressão do pneu está boa
Sabe abrir e fechar uma corrente de bicicleta? Hora de
aprender. Não tem ainda a multiferramenta? Esperando o quê?
Mantenha a corrente bem lubrificada.
Leve um tubinho de lubrificante para a corrente. Você
certamente vai precisar
Luzes de sinalização são obrigatórias. Motorista em estrada
com neblina ou chuva simplesmente não enxerga a tempo um ciclista sem luz; pior
ainda com chuva
Geografia
Estude bem o mapa antes da trip, aprenda os nomes dos
lugares e as distâncias entre eles. Confira os locais bons para descansar. Tome
nota da altitude a subir ou descer. Tudo isso é fácil de verificar no Google
Maps ou Google Earth.
Busque usar as estradas locais e secundárias em vez das
rodovias movimentadas
Imprima um mapa da viagem a partir do Google Maps, ponha o
papel dentro de um saco hermético ZipLoc e leve consigo. Ou então, se vai
carregar a câmera digital na viagem, ponha dentro dela o mapa em JPEG – ou
fotografe diretamente o monitor do PC.
Durante a viagem, até certo ponto você pode substituir o
diário escrito pela sua câmera, simplesmente fotografando o local onde está. A
hora da captura fica gravada junto com a foto, o que é bem útil para o
levantamento do trajeto posterior à viagem. Melhor ainda com um GPS para
assinalar cada ponto
Até mesmo as leituras do odômetro da bike podem ser
registradas em fotos, em vez de anotadas em papéis que a próxima chuva podem
estragar.
Leve uma bússola básica pequena, que pode até ser de
chaveiro. Nem sempre vai dar para achar a direção pelas estrelas, e as
bucólicas estradas interioranas dão muitas voltas e podem desorientar.
Rotina de viagem.
Programa bom: acordar cedo, pegar a estrada às 8h, dar uma
pausa entre 11h e 14h para almoçar evitando o pior do sol, voltar a pedalar até
as 19h, escolher o local para dormir – pousada, acampamento etc.
Evite a todo custo ser pego pelo cair da noite, nem em local
ermo nem em local transitado. Não pegue rodovia com a bike no escuro; nunca dá
para contar com a boa visão nem com o bom senso dos motoristas, em particular à
noite.
Encher a cara na madruga não rola. Não é verdade que no dia
seguinte vai dar para compensar.
A chuva não vai parar você, mas vai tirar muita velocidade.
Mais um motivo para não querer planejar cada perna da viagem comprida demais.
Varia muito de acordo com a topografia do lugar, mas entre 40 km e 70 km por
dia é suficiente para cobrir uma boa distância aproveitando o percurso.
Tenha sempre um “plano B” para contornar a perda de tempo
causada pelos imprevistos.
Interação humana.
O grupo não deve ter muita gente, ao menos se todos os
membros não se conhecerem bem. Quanto menos gente, mais ágil e mais fácil de
coordenar.
O nível de esforço do pedal precisa ser compatível com todo
mundo. Sempre há a chance de uma só pessoa ser mais lenta que as demais e isso
vai causar paradas e atrasos além do planejado, irritando os mais rápidos. A
pessoa mais lenta vai ficar constrangida, sentindo-se pressionada pelo grupo, e
terminará desmotivada para futuras viagens.
Problemas também acontecem com quem é mais rápido. Se a
pessoa não estiver de acordo com seguir um ritmo mais relaxado que o seu, vai
se entediar e se irritar. Mas ela tem que entender que cicloviagem não é treino
nem competição.
Em grupos grandes, a diferença de ritmo vira um fator de
risco, devido à facilidade de os lentos e rápidos se desgarrarem uns dos
outros. Quando alguém no meio ou atrás no grupo sofre um acidente ou falha
mecânica, os que gostam de correr na frente só ficam sabendo depois e perdem a
oportunidade de ajudar
Coisas como distâncias e horários devem ser combinadas entre
todos de antemão e por consenso para evitar irritações durante a viagem. Cada
um deve se comprometer com a agenda que todos estabeleceram.
Evite ao máximo os atritos com motoristas na estrada. Dê
passagem, mesmo que pela lei de trânsito eles devessem dar. Uma estrada
estreita perdida num local completamente estranho, percorrida por motoristas
que você nunca mais vai ver novamente, não é lugar para praticar ideologia.
Manobre de forma previsível, permitindo sempre que o
motorista perceba sua intenção.
As pessoas do interior em geral gostam de ajudar os
viajantes de bike. Puxe conversa, informe-se, aprenda dicas, troque histórias,
faça amizades e aproveite a viagem!
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